sábado, 6 de março de 2010

A Metamorfose


Fotografia de Jonas Bendiksen

Um dia desses, eu estava sentada numa praça, esperando o ônibus para a casa de Madalena, quando um casalzinho sentou-se perto de mim. Os dois, muito jovens, agiam como se não me vissem. Para ele, apaixonado, não existia outra coisa além de sua perfeita namorada, seu mundo. Ela, eu não imagino onde estava, mas certamente não era ali.
Na curiosa relação, ele passou o braço ao redor do pescoço da garota, enrolando delicadamente os cachinhos de seus cabelos com o dedo mindinho. Que bonequinha ela era para ele, o orgulhoso aluno do ensino médio, que ostentava a garota mais bonita da escola ao seu lado. Não que ele não gostasse dela realmente, mas sabe-se como o gostar pode se confundir com a vaidade... Já ela, só fazia olhar para longe, lembrando, pensando, ignorando-o um pouco. O garoto, já incomodado, a questionou sobre essa distração – “que injusto não poder controlar-lhe os pensamentos”, deve ter pensado.
- O que foi Alice? No que está pensando?
- Hã? Ah, nada... – A menina respondeu secamente, retirando seus cabelos dos dedos do rapaz e prendendo-os num coque, no alto da cabeça.
- O que foi? Está brava comigo?
A mocinha então o olhou nos olhos profundamente por alguns segundos, num incômodo silêncio. Nos olhos dele havia espanto, sua boneca criou vida. Por um instante, ela lhe parecia um gigante. Era tão grande que poderia pisar nele, ou assoprá-lo para longe! Alice não o faria, por pena, ou por bem-querer, ele esperava, mas apenas a capacidade de fazê-lo o assustava, dava pra ver em seu rosto. E Alice de fato não o assoprou nem fez menção de levantar um dos pés para esmagá-lo. Ela apenas suspirou, e voltou a desviar o olhar.
O rapaz então se afastou um pouco e abaixou a cabeça, enquanto ela tirava o celular da bolsa para ver as horas.
- Alice, pode dizer. O que foi que eu fiz, por que você está assim?
- Não é nada, já te disse.
Mais uma vez fizeram silêncio. O ar pesou um pouco, e dessa vez foi ela quem se manifestou. Parecia incerta sobre falar ou não, mas acabou perguntando:
- Você já leu aquele livro do Franz Kafka, a Metamorfose?
Ele olhou para ela, um tanto tenso. Acho que ela estava levantando um dos pés, finalmente, ele podia sentir que seria esmagado.
- Não – ele disse.
Alice balançou os pés e cruzou os braços, impacientemente. Depois olhou para ele novamente e disse:
- Se você tivesse lido, entenderia.
O rapaz a fitou perplexo, depois soltou um risinho abafado, e balançou ligeiramente a cabeça. Então parou, olhou para frente e em seguida fitou novamente a namoradinha. Nesse momento o ruído do ônibus que vinha pela rua chamou a atenção de todos. Não era o meu.
- Olha Pedro, é o seu ônibus. – Ainda de braços cruzados, a menina deu-lhe um beijo no rosto, e, numa fração de segundo, virou-se e partiu. Ele a olhou por um tempo que me pareceu eterno, depois entrou no ônibus e se foi também.
Essa história não me saiu da cabeça. Na verdade, fiquei pensando nisso até o jantar, quando um dos filhos da Madalena me pisou no dedão.


Essa é uma história fictícia.

4 comentários:

  1. Que história singela! Singela mas também realista, sóbria - só com a sua mensagem no final eu acreditei realmente que você não tinha presenciado essa história num dia qualquer, sentada no ponto de ônibus! ;)

    Criatividade é mesmo o seu segundo nome, Eli! Uma história bonita, bem escrita e que diz muito sobre você. Os nomes dos personagens! Madalena, Alice... gostei muito da Alice - ela pode ter sido cruel com o garoto que tanto gosta dela, mas gosto de como ela não se submete a viver de um modo que não é ela.

    E o final é muito bom mesmo. Fechou a gestalt! : )

    Um beijo!

    (e o marcador que você colocou também não passou batido: "pontos imaginários"! Muito bom!)

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  2. Que bom que você gostou, Jé! Eu quase nunca consigo escrever e mostrar pra alguém, porque nunca me parece bom o suficiente... Mas dessa vez eu me senti confiante. E agora fiquei mais ainda, com você dizendo que a história está boa!

    Obrigada pelos elogios!!

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  3. Oi, moça! Vim agradecer seu comentário lindo no meu blog, rs. Muito obrigada meeeesmo pelos elogios, me deixaram muito feliz. :) Sempre que quiser comentar, sinta-se à vontade, ok. Adoro ouvir opiniões sempre.

    E, aliás, também adorei o texto. Muito criativo e a sua forma de escrever é muito interessante! Não seja tão exigente com você mesma não (eu também sou, mas sei o quanto isso é péssimo, rs)... Você escreve muito bem! Mesmo!

    Beijos!

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  4. Que bom que você veio, M. F.! Fiquei muito feliz quando vi os seus comentários, e mais ainda quando li que você gostou do meu texto!
    Estou ficando muito orgulhosa de receber tantos elogios : ), e vou começar a escrever com mais frequência!

    Obrigada pelo incentivo!

    Beijos!!!

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